O marido chegara em casa drogado e bêbado, a tirou da cama e a colocou em pé, em frente aos filhos. Começou a xingá-la, a ameaçá-la, a desqualificá-la. O medo e a submissão a deixavam em silêncio, aterrorizada
Assustada, paralisada pelo medo, despedaçada pela dor e pavor que sentia, Maria Elizângela encontrou forças para sair de seu sofrimento pelas mãos do filho Christian, de seis anos. Eram 20 anos de um casamento de prisão em uma relação de violência sexual, física, verbal, psicológica… Naquela noite começava mais uma sessão de humilhação e tortura. Como era de rotina, seu então marido chegara em casa drogado e bêbado, a tirou da cama e a colocou em pé, em frente aos filhos. Começou a xingá-la, a ameaçá-la, a desqualificá-la. O medo e a submissão a deixavam em silêncio, aterrorizada. Mas o filho enfrentou o pai, mais uma vez, e agora ele não estava mais disposto a suportar que a mãe sofresse daquele modo. Foi a criança que a segurou pelas mãos e a encorajou a deixar a casa.
“Com cinco anos de idade, eu vi meu filho enfrentar o pai. Meu filho de cinco anos começou a ser um homem para me defender e falou para ele: ‘você não vai mais xingar a minha mãe!’ (sic)”, lembra Maria Elizângela Antunes Pereira, de 38 anos. Durante os 20 anos em que esteve casada com seu algoz, Maria perdeu sua liberdade, autoestima, sonhos, vontade própria e até mesmo seu nome. Nesses 20 anos, ele a chamava de dona. Não era um apelido carinhoso, mas uma forma dele mostrar seu controle e poder sobre ela. “Pra mim foram 20 anos e oito meses de cadeia. De privação. De cativeiro. Porque meu corpo estava ali mas minha alma não”, avalia.
Ser mãe foi o que a salvou. Foi a força, além da religião, que ela encontrou para suportar esse sofrimento. “Eu tentei suicídio por duas vezes, graças a Deus foi fracassado. Eu só parava porque Deus começava a mostrar na minha cabeça um filme de como seria a vida dos meus filhos sem a minha presença. Meus filhos, naquele cativeiro, foram a força que Deus me deu”, lembra Maria Elizângela. E completa, “era uma dor que eu tinha que engolir, eu não podia falar”. Recorda que foram dois filhos, Christian que hoje tem nove anos e Amanda com 18, que a salvaram. Quando abandonou o ex, ele manipulou e ameaçou a filha para que continuasse com ele.
Hoje, secretária administrativa de uma empresa em Abadia de Goiás, Elizângela tenta novamente recomeçar. Mas para que isso acontecesse ela trilhou um longo caminho. Após se separar, conseguiu ajuda no Centro de Referência da Igualdade (Crei) da Secretaria de Políticas para Mulheres e Promoção da Igualdade Racial (Semira). No local conseguiu resgatar sua autoestima e suporte para conquistar sua liberdade. Uma sensação que não sentia desde os 15 anos de idade.
Atendimento
O combate à violência contra a mulher ganhou uma importante aliada: Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Essa legislação cria mecanismos legais para combater esse crime e estabelece que existem vários tipos de violência: física, moral, psicológica, patrimonial e a sexual. “Muitas vezes a mulher sofre e não percebe que está sendo vítima de algum tipo de violência em que, em regra, o agressor é o marido, o companheiro ou o namorado. Nós temos dados estatísticos que mostram que aqui no Brasil mais de 70% dos agressores são essas pessoas às quais eu me referi. E ela tem o amparo legal em qualquer uma dessas situações de violência”, destaca a secretária da Semira, Gláucia Maria Teodoro Reis.
Para denunciar, a vítima pode procurar qualquer delegacia ou uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), caso haja na sua região. No ano passado, em Goiás, a Polícia Civil registrou 4.742 ocorrências de violência doméstica, sendo 433 em Goiânia. Hoje em todo o Estado há 20 Deams e seis Núcleos Especializados no Atendimento às Mulheres. Nos primeiros três meses deste ano, a Deam, que atende a região central de Goiânia, prendeu em flagrante 102 agressores. Foram mais de 2,3 mil atendimentos e solicitação de 127 medidas protetivas.
A delegada Keller Abrão Gonçalves orienta que as mulheres que forem vítimas de violência doméstica busquem ajuda nos órgãos responsáveis. Segundo ela, a violência doméstica não tem perfil. “Ocorre com mulheres de todas as idades, inclusive há mulheres jovens e idosas. Com as idosas a violência doméstica ocorre normalmente por parte dos filhos, é o que tem o maior número de denúncias. Então, não tem perfil de idade, não tem perfil econômico, está tanto nas classes mais baixas quanto nas mais altas. O que acontece é que, às vezes, as mulheres de classe mais baixa procuram mais a delegacia porque é o único local que podem procurar”, esclarece.
Para acolher essas mulheres vítimas de violência, a Semira está licitando a construção de cinco casas-abrigos no interior do Estado a serem distribuídas regionalmente. Enquanto isso, elas são encaminhadas para instituições parceiras. A estimativa é que isso esteja consolidado até o final do ano. Além disso, a Semira tem dois ônibus (duas unidades móveis) que transitam por todo o Estado para atender a mulher do campo, equipe multidisciplinar de advogados e profissionais da saúde (assistentes sociais e psicólogos). Em Goiânia, esse papel é exercido pelo Centro de Referência da Igualdade (Crei) que atende, além das mulheres vítimas de violência, vítimas de homofobia e racismo. A Secretaria atua também no suporte às Deams e centros especializados de atendimento às mulheres no interior (municipais), seja com mobiliário e custeio de equipes multidisciplinares.
“O Crei foi uma bênção na minha vida”, conta Elizângela. Ela soube do Centro por meio de uma amiga. Lá recebeu atendimento jurídico – que são as profissionais que acompanham o andamento de seu divórcio – e psicológico. “Eu não tinha autoestima, não vivia mais. Estava vegetando. Não tinha mais sonhos. A única vontade que eu tinha era não morrer, porque eu queria que meus filhos estivessem bem. Quando cheguei na Semira, a Beatriz (advogada do Crei) me passou para pessoas lá dentro, psicólogas… Eu estava me sentindo como um bebê que precisava aprender tudo de novo. E foi assim que consegui superar, através de Deus primeiro, depois desse órgão”, destaca Maria Elizângela.
A superação da violência fez com que Elizângela criasse novos projetos para sua vida. Hoje ela coordena um grupo de mulheres que se autoajudam. Mulheres que agora ela encaminha para o auxílio da Semira. “Quando a mulher passa por isso o primeiro direito que é tirado dela é o direito de ir e vir. Ela não tem mais direito de andar. Tem que ficar presa enquanto o marido agressor está solto. Começa a faltar a autoestima. Daí aquela mulher começa a passar privações. Porque sem autoestima ela não consegue trabalhar. Ela não tem um creme, um xampu… Depois vem aquela suposta ajuda de ficar de favor na casa de alguém. Vai piorando. Ela ainda vai ficar com a consciência pesada porque está comendo, bebendo, dormindo e não consegue repor para aquela família que a está abrigando. Piora mais, porque começa a ver o filho: ‘Mãe eu queria tomar um iogurte, queria um pão…’ Ela vê o filho do vizinho com isso, mas não pode dar. O meu grupo de autoajuda é para ela buscar também um alimento, mas precisa ter, pelo menos, algo para levar para casa. As pessoas que trabalham no centro dão tudo que têm, tudo que são”.
Fonte: DM/ GA
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