Carne de fezes é falsa

História difundida, na internet, credita a pesquisador ideia de transformar produto do esgoto, que contém dejetos humanos, em carne artificial

O ser humano é carnívoro, mas por que se alimentar

com a carne de outros animais? Alguns fogem à regra e se dizem vegetarianos, evitando em um momento específico, da vida, ingerir proteínas dessa fonte. Recentemente várias publicações em sites, têm chamado a atenção para uma suposta pesquisa que teria encontrado um procedimento capaz de produzir carne artificial de um material orgânico obtido nos esgotos.

A reportagem do Diário da Manhã buscou informações da veracidade desse material. Enquanto sites divulgam a matéria, que nem é tão recente assim, outros dizem que ela é apenas mais um mito, muito bem construído e espalhado pela da internet, inclusive com vídeos no YouTube. O assunto é tão atraente que mesmo jornais nacionais e internacionais conceituados repercutiram a história.

Foto: Ilustrativa

Entenda

As notícias são de que o cientista japonês Mitsuyuki Ikeda, foi capaz de criar um processo laboratorial capaz de transformar a lama residual do tratamento de esgoto em carne artificial. O ponto chave da questão é que essa lama contenha resíduos de excrementos humanos ao ponto de ser apelidada de poop burguer – traduzido como hambúrguer de cocô, menção a um dos produtos que seriam fabricados depois da transformação em carne.

No processo, supostamente desenvolvido pelo pesquisador, as proteínas e os lipídios são retirados da lama do esgoto e passam por um procedimento de esterilização que acabaria com todas as bactérias vivas. Depois ele adicionaria outros produtos, proteína de

soja e molho de carne para que o produto tenha gosto de tal.

As matérias divulgadas foram baseadas em vídeo publicado no YouTube e que resumiria o processo. O vídeo em inglês com as partes narradas, como sendo falas de Ikeda em sua língua de origem. Quem assiste as imagens pode levar a se perguntar se elas não são apenas montagens e mesmo se o áudio possa ter sido modificado.

O certo é que o vídeo foi publicado na rede ainda em outubro de 2010, mas começou a repercutir depois de posteriormente ser republicado, em abril de 2011, com o nome de A solução para a crise alimentar global. Depois dessa publicação, vários sites começaram a fazer matérias baseadas no vídeo.

Verdade ou mito

Com uma busca simples pela internet é possível descobrir várias teses e alguns fatos a veracidade das informações e do vídeo em cheque. Primeiramente o laboratório citado nas imagens produz apenas dispositivos médicos. Mitsuyuki Ikeda é um cientista, porém não ligado a Universidade de Okayama.

Nas pesquisas, Mitsuyuki Ikeda aparece em dois momentos. Um em uma patente de invenção de um aspirador de pó, juntamente com outros cientistas. O documento é de janeiro de 1973. Em outro momento o nome se refere a um homem nascido em 4 de abril de 1959, que é diretor da Associação Unesco Okayama. Este mantém na internet algumas publicações sobre Educação Ambiental, e em seu currículo não consta a famosa história da carne de dejetos humanos.

Seu artigo mais encontrado é Construindo um Sistema de Educação Ambiental para Comunidade Global Pacífica, em que defende a ideia de que o mundo precisa trabalhar em conjunto para reverter a deterioração do meio ambiente. Este cientista é engenheiro e consultor em Meio Ambiente e Engenharia Civil e além do cargo na Unesco é diretor representante da West Japan, empresa de avaliação ambiental.

Este mesmo Ikeda consta em um panfleto como palestrante no “Conselho Japão na Década das Nações Unidas da Educação para o Desenvolvimento Sustentável (ESD-J)”. A foto deste, porém é quase idêntica ao homem que aparece nas imagens do vídeo – mesmo estilo no cabelo, a marca no rosto, e os dentes tortos – apenas com uma diferença, parece mais velho na fotografia do informativo do que nas imagens do vídeo.

Sites internacionais ainda informam que histórias parecidas datam ainda da década de 1990. A reportagem enviou correspondência eletrônica para o endereço ligado ao cientista ambiental Ikeda, porém não obteve respostas.

Diante do mito, questões interessantes podem ser levantadas como, por exemplo, o que é feito com o esgoto produzido diariamente nas casas e indústrias ou o porquê do ser humano comer carne?

Por que se come carne? O que o corpo absorve dos alimentos?

A carne contribui para uma alimentação equilibrada e tem papel importante na alimentação. É fonte de proteínas de alta qualidade que atuam na construção e regeneração celular. Mesmo que recentemente os efeitos da carne vermelha venham sendo questionados, por trazer risco de doenças cardiovasculares, pontua a especialista em Nutrição Clínica e Metabólica, Tályta Fortuna Rezende, 25 anos.  

Ainda conforme a nutricionista, a carne de outros animais tem sido a base da alimentação humana desde os tempos pré-históricos, e além de proteínas é fonte de minerais como ferro (que previne a anemia), zinco (importante para o crescimento, função imunológica e cicatrização), ácidos graxos essenciais e vitaminas do complexo B, principalmente a B12.

Porém, Tátyla adverte que se deve dar preferência à carne magra, e que a quantidade de consumo varia em função da frequência e das necessidades nutricionais de cada um. “E optar pelas preparações assadas, grelhadas ou refogadas para não aumentar o teor de gordura e o valor calórico da preparação”, acrescenta.

Sobre o processo digestivo, a profissional esclarece que ao chegar ao estômago e ser atingido pelos sucos gástricos, o bolo alimentar pode ter seus nutrientes absorvidos pelo revestimento interno do intestino delgado e preparados para entrar nos vasos sanguíneos. As fezes, conforme Tátyla, são formadas por resíduos de alimentos não digeridos, por bactérias da flora intestinal e produtos da descamação do intestino, que se renova diariamente.

Para onde vão os dejetos produzidos pelo homem?

Em tempos em que o assunto meio ambiente está em alta, é preciso pensar em ideias com aplicabilidade no sentido de proteção ambiental e reutilização de materiais para poupar matérias-primas. Para a química Cleide Sandra Tavares Araújo, 51 anos, docente na Universidade Estadual de Goiás em Anápolis, a relação de consumo está diretamente interligada ao desenvolvimento da sociedade, que consome impulsionada pelo desejo operado pela sociedade.

“Se a proposta do desenvolvimento sustentável é satisfazer as necessidades das gerações presentes, sem comprometer a qualidade de vida das gerações futuras, a reciclagem se apresenta como uma alternativa promissora e eficaz na redução do volume do lixo, e contribui para diminuir a poluição e a contaminação do solo. Ajuda a economizar matéria-prima e energia usada para fabricação de outros produtos”, complementa.

Para a química, um importante método de preservação, é o tratamento do esgoto que evita a contaminação de córregos, rios, mananciais e solo. Ainda promove a reutilização da água para diversas finalidades. Em Goiânia e nas cidades de Abadia de Goiás, Bela Vista de Goiás, Goianira, Guapó e Terezópolis de Goiás, a Gerência de Tratamento de Esgoto é responsável pela operação, manutenção e conservação das Estações de Tratamento Sanitário (ETE) e das Estações Elevatórias de Esgoto (EEE), totalizando 12 ETEs.

Na Capital funcionam sete locais de tratamento, que tratam o volume diário de 136.166 m3 de esgoto. Na ETE Dr. Hélio Seixo de Britto – maior em funcionamento – o sistema consiste no tratamento primário com adição de produtos químicos. “Ela é responsável pela coleta e tratamento de aproximadamente 90% do esgoto de Goiânia, o que corresponde a 764.100 habitantes”, esclarece Fausto Batista Alves dos Santos, engenheiro civil e gerente de tratamento de esgoto da região.

Conforme ele, Goiânia possui ainda três ETEs com reator anaeróbio de fluxo ascendente, biofiltro, decantador secundário e clorador, que atende cerca de oito mil pessoas. “Os demais são sistemas com lagoas de estabilização, atendendo 84 mil pessoas”, complementa. Em cada unidade o processo preliminar consiste em grades ou peneiras e caixas desarenadoras, para retirar os detritos e areia. Depois de tratado, o esgoto se divide em líquido – com volume ligeiramente inferior ao esgoto bruto – e resíduo sólido: areia e detritos (1.500 m3 por ano) e lodo (40.300 m3 por ano).

De acordo com Fausto, em um lodo digerido se encontra em torno de 70% de matéria inorgânica e 30% de matéria orgânica. Na matéria orgânica há proteínas, lipídios e organismos. “A presença de contaminantes como metais e compostos orgânicos presentes no lodo, vai depender da localidade atendida pelo tratamento de esgoto. Quanto mais esgoto industrial for lançado no sistema, mesmo que com pré­tratamento que atenda as exigências da operadora, pode contribuir com algum destes contaminantes”, explica.

Quanto aos organismos pode haver vírus, bactérias como a salmonella e nematelmintos como a Ascaris lumbricoides e a Tênia saginata. Porém, o lodo contém nutrientes como fósforo, nitrogênio e potássio. “Portanto, desde que monitorado, higienizado e com o devido controle, pode ser disposto no solo para uso agrícola ou ser utilizado em compostos ou fertilizantes organomineral”, informa Fausto.

O esgoto tratado é devolvido ao rio, os detritos vão para o aterro sanitário, assim como a areia. Porém, o lodo além do aterro sanitário, e no caso específico da ETE Dr. Hélio Seixo de Britto, pode ser usado na recuperação de áreas degradadas. “Para se fazer essa disposição do lodo da ETE, a Saneago tem um contrato, cujo escopo envolve a elaboração de projetos ambientais para cada área de disposição, aprovação na Semarh, atendimento à Resolução Conama N° 375/2006, monitoramento mensal do lodo, do solo e da água subterrânea, transporte do lodo aos locais de aplicação, incorporação e plantio de eucaliptos”, afirma o responsável pelo esgoto da região.

Por Divania Rodrigues do DM-GO